quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Mad Men


A SIC emitiu durante o Jornal da Noite, em 19 de Fevereiro, uma reportagem sobre «jovens de sucesso». São perseverantes e determinados; seguros das suas capacidades; perseguem um sonho e ousam acreditar; têm ideias e força para as realizar. São recompensados: vencem!

O texto não era este, o tom apologético sim. Faltou proclamar: «Deus quer, o Homem sonha e a obra nasce.»

Os jovens em causa, dois, imberbes, ambos na casa dos 20 anos, um deles belfo*, apresentaram-se em escritório com vista desimpedida sobre o Tejo. Nas paredes: pinturas murais. O recheio: mobiliário de design. A informática: computadores Apple. Um deles circulava no espaço de trabalho em bicicleta de luxo. O propósito? Ilustrar a informalidade, o desprendimento dos espíritos criativos. O outro, preferiu o blazer e pôr em vista o relógio de pulso, duas vezes mais largo que os seus ténues rádio e ulna. 

O líder do projecto, o ciclista, deu a conhecer a "ideia vencedora": constituir uma agência de publicidade e "marketing de guerrilha". Explicou como, depois de ingressar na McCann Erickson (hoje McCann Worldgroup, líder mundial neste sector de actividade), verificou ao «segundo dia» que os seus «valores pessoais», não se adequavam aos princípios da multinacional. Mesmo assim, o próprio confessa, ainda lá ficou por mais dois meses até ser despedido. Logo a seguir, com o amigo e hoje sócio, fundou a sua empresa de publicidade.

Em busca de notoriedade, ofereceram dinheiro («notas de cinco euros») a transeuntes e filmarem, «sem eles saberem», as reacções. Para quem acabou de iniciar uma actividade não está mal pensado. É difícil acreditar que os passantes, todos "homens de negócios", não tenham ficado ansiosos por contratar publicitários que oferecem dinheiro.

Hoje, a empresa que já possui "colaboradores", incentiva-os a sair do escritório, afastarem-se dos meios informáticos e, «apenas com papel e lápis», acercarem-se do Tejo, onde dando curso livre à imaginação geram ideias. O arrazoado durou minutos, um débito constante de lugares-comuns sobre a importância da descontracção, o valor do disparate e a necessidade do erro. Tudo ao melhor estilo dos pequenos digest sobre gestão e recursos humanos, oferecidos na compra de uma qualquer revista de management. Nesse momento da "reportagem", já esperava ver o edifício elevar-se do solo e levitar sobre Lisboa, tal a energia que todo aquele pensamento positivo gerava.

É assim o nosso futuro: aos Vencidos da Vida, homens de génio, sucedem hoje medíocres empresários de "sucesso".

Pena-me que a SIC não tenha revelado o critério para determinar o êxito da iniciativa ou, em alternativa, informado o seguinte:
  • método de financiamento do projecto e garantias apresentadas;
  • forma de eleição da empresa pelos clientes;
  • trabalhos representativos;
  • situação financeira actual e facturação bruta de 2011;
  • tipologia de clientes (sector público ou privado).

Na sua falta ficamos sem saber, se esta é uma empresa bem sucedida, ou uma empresa com aparência de sucesso; se tudo isto se deve ao trabalho e brilhantismo dos seus proprietários, ou a factores exógenos.  

Não afirmo estarmos perante empresários que, de falência em falência atingem a riqueza total, ou que tudo não passou de marketing pessoal. Queixo-me é de ter ficado sem saber no que consiste o sucesso jovem, em geral e neste caso em particular.

Tão pouco o "espectáculo" foi eficaz na promoção dos visados**.  Fiquei persuadido que os meus assuntos estarão mais bem entregues a um tarimbeiro do ofício que, sentando uma jovem de biquíni na capota de um descapotável me venda os pregos de cabeça quadrada, que a estes "guerrilheiros urbanos".

A "reportagem" da SIC foi lamentável. É criminoso disseminar a ideia que o sucesso está ao alcance de todos e de qualquer um, que para nos cair bolsos adentro basta possuir qualidades de catálogo. Isso não corresponde à verdade. Nos mais jovens e menos avisados, cria expectativas erradas, sonhos impossíveis de cumprir e frustrações árduas de sarar. Infelizmente as histórias americanas de sucessos milionários, antes dos 30 anos, continuam a medrar no tecido adiposo da comunicação social. Aquém e além fronteiras.

Resumindo: estarei a ser preconceituoso, talvez, mas nada do que vi reveste carácter informativo, apenas uma descarada tentativa de manipulação e inebriamento dos lobos frontais mais desprotegidos.

Sejamos claros o sucesso não é fácil, pode tardar uma vida a gente com valia e mérito. E pode nunca chegar. Ou esvai-se com celeridade. Raramente coagula.

Sejamos ainda mais claros: não basta ser jovem, inteligente, trabalhador incansável, imaginativo, vislumbrar uma oportunidade e ter uma boa ideia. É necessário dinheiro. Crédito bancário, ou em alternativa, obter a confiança de investidores de capital de risco***. Finalmente há que somar o conjunto das variáveis económicas e financeiras. E ter sorte.

Hoje sabemos: o crédito é coisa que não existe - nem sequer no banco público, e muito por culpa do passado recente****. Difundir a ideia de ser possível o "sucesso" dos jovens "com um sonho", num país condenado ao modelo laboral chinês, destruída que está a classe média, o “Estado Social” e mesmo os pobres, é estupidez, excesso de drogas lícitas, ou ambas. 

A receita oficial está dada: emigração. Para quem ficar a alternativa: empregador, "jovem de sucesso", ou escravo alfabetizado*****. Em suma: o empresariado espreita nas esquinas do IEFP******.  

Este avinagrado libelo regurgita agora porque deparei na imprensa, no defunto fim-de-semana, novamente com quantidades aterradoras de leadership, coaching e demais parafernália identificada aqui


Confirmei o que já sabia, o achievement syndrome assola o país. Hoje é certo e seguro. Falta-lhe a si o gene do empreendedorismo? Nessa condição tem o fracasso como destino, a humilhação como itinerário, o rancor como bordão.

_______________________

* Impeditivo de nada, 2500 anos de retórica foram aniquilados por 12 anos de apresentações audiovisuais.
** Lêem as "notas pessoais" dos suplementos económicos onde dão conta das transferências e promoções dos "jovens de sucesso"? Experimentem.
*** Praticamente inexistente em Portugal e um bom indicador do empreendedorismo dos nossos banqueiros e capitalistas; essa qualidade exigida aos trabalhadores, desempregados e jovens em início de “carreira”.
**** A CGD despendeu centenas de milhões de euros em crédito para investimento especulativo, não acrescentando um posto de trabalho ou um bem produzido, tudo destinado a comprar acções do BCP, da Brisa, da ZON, da PT etc. Com Joe Berardo (e outros), que vive abrigado de impostos na sua amada fundação, a CGD vê-se obrigada a um aumento de capital para suportar prejuízos dos empréstimos feitos a esse empresário de "sucesso". O dinheiro sai dos bolsos dos contribuintes.
***** Mesmo a carne para canhão carece de 12 anos de escolaridade, falar línguas e "experiência em informática na óptica do utilizador".
****** Claro que existem alternativas invisíveis: gestor público; assessor governamental; cunhado da ministra; irmão do ministro, etc.

19 comentários:

  1. Isto não é uma foto do Mad Men. Quero o meu dinheiro de volta!

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  2. Eu vi.

    Foi deprimente. Claramente das reportagens mais encomendadas de sempre.

    A elevação de dois putos que nada conseguiram a não ser sacar umas massas valentes aos pais!

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  3. Anónimo13:54

    Eu também vi. Um logro autêntico, face à realidade do desemprego e do do país.
    Uma mensagem com os valores todos subvertidos.

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  4. No final da reportagem fiquei a pensar: Afinal de contas que merda é que estes gajos fazem? Não percebi os projectos, nem os objectivos.

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  5. Não vi a reportagem, e parece que ainda bem. Acabei por vê-la aqui sob um ponto de vista, talvez, muito mais informativo, e definitivamente,mais adaptado à realidade, inclusive dos quantos que tenho lido sobre a nossa realidade. Este, é um texto que não é, é uma voz. Ouve-se a tua voz, sem se ouvir, neste texto. E através dela e dele, percebe-se que aqui não se trata somente de cultura, há a sabedoria de quem avalia, pesa, e argumenta com a visão do passado, presente e futuro e sem alarmes, vontade de luzes de palco ou derrotismos, diz - porque sabe - como se deve fazer. Este, é um texto que devia ser dado a ler, obrigatoriamente, a todo o aluno que prepara agora a entrada na faculdade. Assim, não muito cedo, quando eles ainda não percebem nada, nem tarde demais, quando, por vias do desespero ou facilidades de conta bancária, se entregam a estes devaneios.

    Não sabendo eu de muitas coisas, sempre me apraz a consciência de que consigo discernir o brilliant do average e mais ainda, o prazer de te poder ler.

    Agora vou voltar ao meu normal, (justificando este meu pequeno deslize de seriedade com o facto de andar tão, mas tão na merda, devido a gente tão mas tão merda, que quis ver só se ainda conseguia, e porque mereces, claro, mas isso eu já disse) e vou-te perguntar, onde caralho está a coisa pra se seguir comentários, nesta bosta que o blogger passa a vida a mudar. E sempre pra pior.

    Obrigada.



    Ps: se deres com erros ortograficos, releva, sff.

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  6. Isa, obrigado.


    Já não corava tanto desde os 18 anos (descontando aquele caso em que a menina do provador entrou sem pedir licença - não sabia as horas).

    Vou imprimir, emoldurar e pendurar à cabeceira da cama; isso fará de mim uma pessoa melhor. Se puderes envia uma foto em trajes menores. Uma identificação visual da Santa ajuda sempre. Vou também alterar o testamento: ficas nomeada para o elogio fúnebre.



    Quanto ao Blogger até agora só descobri uma solução, e não sei se funciona em todos os navegadores: no separador Posts and comments/Comments/Comment location seleccionas Embedded. Sem garantias. Eu que preferia a Popup Window, lá se foi.

    Em alguns casos, se clicares no título do post e este aparecer em página inteira, mesmo em baixo aparece o link para subscrever os comentários, mas nesse caso será por RSS (feed) e não por E-Mail. Enfim uma trampa tudo isto.


    (Que doideira tua essa com a ortografia)

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    1. Não sei o que fiz mas passou a existir uma resposta em single thread.

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    2. Não é single. O fuso horário está correcto as horas estão baralhadas :/ Querem imitar o Wordpress está visto.


      Agora que já alimentei a insónia vou voltar a dormir. 'Té mais logo.

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  7. Ia-me esquecendo: consegues quando queres; pena que queiras tão pouco.

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  8. Obrigado também aos demais.

    Aqui não se devolve nada, é ao contrário: eu exproprio.

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    1. Justíssimo!
      Mas compreende: se eu fizesse um post chamado "O Anão Gigante" e a seguir contasse um episódio infeliz da nossa informação (by the way, palmas a ti) o mulherio ia ficar muito desiludido! :)

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  9. Anónimo09:14

    Este post caiu que nem ginjas! Ainda ontem o mostrei a um amigo meu que teima em ver oásis onde só há areia e camelos, muitos.
    Espero que ele tenha aprendido alguma coisa. :)

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  10. sobre estes imberbes vencedores, um deleite ...

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  11. Este tipo de reportagens que as nossas televisões tanto gostam de fazer deviam ser seguidas 1 ano depois, ao estilo perdidos e achados, para percebermos realmente onde é que estas empresas foram parar.

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  12. Anaum, meu caro, obrigada pela resposta/ajuda. Como até me conheces um bocado, deves calcular que só não fiquei como estava, porque acho sempre uma delícia quando um homem se esforça assim, sabendo de antemão serem infrutíferos os seus intentos.(Pá, gosto. Valorizo. Aprecio). Daí ter ficado igualmente desinformatizada, mas mais reiterada a teu respeito.

    Se eu te mandasse uma foto minha em trajes menores, temeria, doravante, pelo teu merecido repouso,(mas se tiveres aí uma maquia acima dos 5 dígitos, a coisa ainda pode que s'arranje) e quanto ao teu funeral, gajo, tás parvo ó quê? ia lá eu perder a oportunidade de ter o imenso gosto de te receber, lá no sítio pra onde se vai depois desta bosta onde se esteve, com a pompa e circunstância caquelas alminhas nunca antes hão-de ter vivenciado.. MAS, se fosse eu a oradora de tal cerimónia, tu podes crer que seria memorável.
    (Assim de repente, estou a lembrar-de da feitura dum pequeno apanhado das pérolas - das verdadeiras - caqui leio. Como por exemplo, "Toma-me e decide-me". Isto bem exploradinho, dava aí pra uma semanita de proactividade supimpa e te garanto, meu bem, dias melhores daí adviriam prá Humanidade em geralmente falando).

    Bolas, agora já não sei se morra antes ou depois de ti...
    Fartinha destes impasses á tua conta, hã?

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  13. Essa cabecinha... quanta dela já foi mal gasta? Um desperdício é o que te digo.

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  14. Só hoje li isto, também vi, isto é tudo o que queria dizer sobre o episódio. Certeiro, anão.
    Ainda tenho de cá voltar para ler os comentários todos com tempo.

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  15. Este post está genial.

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